Empatia de mãe para filho
- Cintia Neves de Azambuja
- 14 de jul. de 2024
- 6 min de leitura
Atualizado: 26 de jul. de 2024
Como uma tarde bem planejada fez diferença para mim e para meus filhos.

Crianças do IBC montando a maquete
Eu não me lembro bem a idade que eu tinha. Acredito que uns 13 ou 14 anos. Minha professora avisou que iríamos visitar um orfanato na semana seguinte, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Naquela época, não se falava em trabalho voluntário ou empatia. Mas aquela visita me fez dar valor a cada minuto do meu dia e do convívio com minha família.
Chegamos e fomos recebidos por crianças menores do que eu e por algumas pessoas que trabalhavam no local. Ficamos durante umas duas ou três horas brincando com elas, conversando, fazendo atividades em grupo e dando atenção a cada uma. Lembro exatamente como era o pátio e o rosto da menina que não se desgrudava de mim.
O nome dela era Raquel. Ela deveria ter uns 7 anos no máximo. Quando as crianças perceberam que estava na hora de irmos embora, Raquel segurou minha mão e me pediu para que a levasse para a minha casa.
Foi aí que meu coração apertou. Eu não me lembro exatamente quais as palavras que eu usei, mas disse que eu não poderia levá-la, porque eu também era criança. Saí de lá e fiquei com a imagem da menina na cabeça por muito tempo. Era um sentimento novo para mim e que eu não compreendia bem.
Naquela tarde, saí mais madura daquele orfanato. A empatia estava trabalhada. Eu me senti privilegiada por ter uma família, de viver num lugar seguro. E eu me senti extremamente útil. Eu fui responsável pela alegria daquelas crianças durante uma tarde. Isso era muito importante para elas. Foi também para mim e, certamente, para os meus colegas da escola. É isso que o trabalho voluntário faz com as pessoas. Raquel foi um choque de realidade para mim.
Aquela experiência foi tão marcante que, anos depois, resolvi fazer algo parecido com meus filhos. Por isso, resolvi levar o Diogo para conhecer uma favela. Laura passou uma tarde com crianças cegas do Instituto Benjamin Constant.

Vista panorâmica do Complexo do Alemão
COMPLEXO DO ALEMÃO
Diogo tinha por volta de 15 anos. Gostava de videogame, estudava numa boa escola, vivia com os amigos. Um garoto normal como outro qualquer. Ele estava longe da realidade de muitos jovens que moram nas favelas do Rio, cercadas de violência e de dificuldades. Mesmo sabendo que ele dava valor ao que tinha, achei que valeria a pena mostrar um pouco da realidade do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, eu o levaria para passar um dia no meu trabalho.
Naquela época, eu dava aula na numa Faculdade em Bonsucesso. Era perto da estação do teleférico, que levava ao Complexo do Alemão. Eu e meus alunos de jornalismo iríamos contar a história da favela e, para isso, iríamos entrevistar um morador bem antigo de lá.
Em 2011, o Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, tinha 60.583 habitantes residentes em 18.442 domicílios. Nem todos os bairros da favela estavam pacificados, mas o trecho que visitaríamos estava coberto pelos militares. Por isso, era seguro para nós.
Entramos com o veículo da Instituição. Diogo viu os militares, conversou com eles, viu um fuzil de perto, o que ele conhecia somente pelos jogos. Depois, acompanhou a gravação e ouviu as histórias de violência na favela, desde os anos de 1970. Ele percebeu como a violência se manteve durante todo o tempo, com roupagem nova.
No final da entrevista, decidimos retornar pelo teleférico. Um dos funcionários da Faculdade que nos acompanhava era morador do Morro e conhecia bem o local, já que nasceu e viveu ali a vida toda. Conforme o veículo andava nas vielas estreitas até a estação, ele mostrava o Bar do João, a vendinha da Dona Maria e o local onde ele brincava quando criança. Quando passamos de carro por uma loja de variedades, Diogo viu pendurados alguns jogos de videogame que ele gostava, todos piratas. Talvez ali ele tenha encontrado uma ligação desses dois mundos paralelos: os meninos do Complexo do Alemão também gostavam dos jogos que ele jogava. O carro continuou e o meu colega de trabalho mostrou o "paredão". Ali, no "paredão", pessoas eram executadas por fuzilamento.
Chegamos na estação, compramos o ticket e pegamos o teleférico. A viagem foi impressionante. Passamos por centenas de barracos e casas, avistávamos milhares deles do alto. Um amontoado de casas, quase nenhuma pracinha, lugar nenhum agradável para crianças brincarem. Voltamos para casa cheios de histórias para conversar e refletir. Foi o que fizemos.
O que o Diogo absorveu com aquela visita? Além do conhecimento geográfico de sua cidade, a empatia e a compreensão foram trabalhadas, já que ele compreendeu melhor as realidades e desafios enfrentados por moradores de favelas; e aprendeu sobre a diversidade cultural e social do país. Além disso, ele foi capaz de refletir sobre políticas de segurança, direitos humanos e o papel das forças militares.
Hoje, não daria para fazer este mesmo passeio, porque a violência tomou novamente a favela e o teleférico não funciona desde 2016.

A maquete produzida por Laura e amigas
UMA TARDE NO INSTITUTO BENJAMIN CONSTANT (IBC)
Laura estava no 8º ano do Ensino Fundamental e tinha que desenvolver um projeto de voluntariado para a escola. Ela conversou comigo e disse que não tinha ideia do que fazer. Falei da minha experiência com crianças órfãs, o que talvez a tenha incentivado a desenvolver um projeto para crianças. Aí, conversamos sobre aquelas que passam por alguma dificuldade ou que apresentavam algum problema. Aí chegamos em crianças com deficiência visual.
Eu falei com ela que, há muitos anos, eu fiz uma reportagem no Instituto Benjamin Constant - uma instituição federal especializada na educação e atendimento de pessoas cegas e com baixa visão. Disse que eles tinham uma casa montada para ajudar pessoas que ficam cegas na fase adulta a se adaptarem às atividades domésticas. Falei de crianças que vi e que entrevistei lá. E de um projeto que havia na época de leitura para cegos. A partir da nossa conversa, ela começou a montar o trabalho. Eu fiz o primeiro contato com o Instituto para marcar uma entrevista dela com o Orientador Pedagógico de lá.
Laura foi muito bem recebida e contou a ideia dela: ela adaptaria uma história infantil e a contaria para as crianças. Porém, depois de ouvirem, elas poderiam “montar” a história, construindo uma maquete com os personagens e a casa onde a história se ambientava. Todas as instruções foram dadas a ela: como deveria falar sobre cores, já que as crianças não veem; que tipo de material poderia utilizar na maquete para facilitar o manuseio delas e, com base na história, eles selecionaram crianças do ensino fundamental para a atividade. Tudo foi agendado.
As três colegas da escola que iriam fazer o trabalho com ela foram para nossa casa para criar a maquete. Gravei tudo para que elas pudessem ter o material para mostrar na escola. Com tudo pronto, elas foram para o Instituto.
Como a história era sobre uma casa rodeada de um belo jardim, passei numa floricultura e comprei vários tipos de flores. Eram de tamanhos diferentes e nenhum espinho.
Depois que elas leram a história, elas entregavam um pedaço da maquete para as crianças escolherem onde colocariam. A casa já estava no lugar. Assim, elas tinham uma referência. Primeiro, apalpavam a casa, depois passavam a mão no gravado até encontrar o velcro onde poderiam colocar sua peça. Eram flores, árvores, o gatinho, o cachorro... Por fim, elas puderam segurar as flores reais, sentirem o cheiro e a textura delas. Foi uma tarde muito proveitosa para todos. Claro que eu estava presente e muito feliz com o resultado do trabalho da Laura e das amigas.
Ao visitar o Instituto Benjamin Constant, Laura desenvolveu a habilidade de comunicação e gestão de relacionamento, já que precisou se comunicar de forma clara, respeitosa e eficaz com os responsáveis pelo local, demonstrando habilidades de negociação e adaptabilidade. A empatia e a sensibilidade foram trabalhadas ao contar a história para crianças cegas. A criação da maquete foi um excelente exercício de criatividade para criar algo que representasse a história através do tato. Também foi ótimo para habilidades manuais e artísticas. O planejamento e a organização foram fundamentais para que tudo fosse feito da melhor forma. E as flores reais estimularam os sentidos das crianças. Contar a história e interagir com elas exigiu habilidade de comunicação adaptada, já que tiveram que ajustar a linguagem (cores não são faladas sozinhas. Estão sempre associadas com outras palavras. Azul, por exemplo, é “azul do céu”). No final da atividade, Laura e as colegas doaram a maquete para o IBC.
A tarde no IBC foi de inclusão, aprendizagem e de criatividade. E gerou muito papo e reflexão entre nós. E ela deu mais valor a coisas os jovens nunca pensam. A saúde, a beleza de poder enxergar flores, um gatinho, o céu azul.
E aí, o que você pode fazer para mostrar um pouco da realidade de outras famílias para seu filho?
Foto Complexo do Alemão: https://images03.brasildefato.com.br/a7ef728b3e0f574f8af719cc2f354490.jpeg
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